terça-feira, 19 de junho de 2012

Advogado das causas impossíveis




Em que momento um sonho começa? Pergunta difícil. Subjetiva. Marcada por influências, incentivos, medos, inseguranças, dúvidas, luta, determinação, fé, esperança e muita, muita paixão.
Me lembro exatamente do dia em que comecei a construir meu sonho de ser advogada. Era um domingo, 13 de novembro de 2005. Eu não tinha nada, nada pra fazer, e encontrei um velho livro da minha mãe chamado O Sol é Para Todos. Nesta história, Atticus Finch, um advogado, defende Tom Robinson, um negro acusado injustamente de estuprar uma mulher branca. Tarefa dificílima (para não falar impossível) no sul dos EUA na década de 1930. No livro, meu parágrafo favorito está no capítulo 11, quando Atticus diz a Jem, seu filho, que “coragem é quando você sabe que está derrotado antes mesmo de começar, mas começa assim mesmo, e vai até o fim, apesar de tudo. Raramente a gente vence, mas isso pode até acontecer”. Atticus era um advogado de causas impossíveis. Eu queria ser como ele. E uma semente foi plantada.
Passei a cultivar essa semente. Recebi incentivos e apoio ao manifestar, ainda que vagamente, a ideia de estudar Direito. Tive medo, mas a determinação era maior.
Em maio de 2006 participei do FERA- Festival de Arte da Rede Estudantil. Ali, a semente cresceu e se tornou um brotinho. Naquela semana, decidi, após várias conversas e leituras sobre o assunto, estudar Direito de uma vez por todas. Nesses mesmos dias participei de um concurso de redação promovido pelas Faculdades Guarapuava, em que o primeiro lugar consistia numa bolsa de estudos integral para o curso que eu desejasse. Em 13 de maio, após dançar ao som do povo livre dos quilombolas, o resultado foi anunciado e eu venci. Eu fiquei tão chocada com aquilo, “eu?” não dava pra acreditar. Parecia um zumbi ao receber o certificado. Mas me lembro, ao subir ao palco para receber o prêmio, que perguntaram “já sabe qual curso vai fazer?” não tive dúvidas. Quase sem pensar respondi “Direito”.
No ano seguinte, a faculdade começou. E foram cinco anos difíceis... em muitos momentos o brotinho quase morreu. Quis muito deixar o curso em 2009, pensando que não ia dar conta. Era impossível conciliar tudo. Entre vários arranjos, as coisas retomaram seu curso normal.
Depois, com o estágio obrigatório, me identifiquei de novo com o curso. Vida corrida, faculdade, estágio, estágio obrigatório. Mas valia a pena. Era o meu sonho. Deixei festas, encontros da PJ (alguns), partilhas e vivências para fazer grupo de estudo, trabalhos ou mesmo correr atrás de algo do estágio. Eu teria a minha recompensa.
Em 2011, o maior de todos os desafios: o exame de Ordem. Finalmente meus conhecimentos jurídicos seriam postos a prova, e eu estava apavorada. Não dormi na véspera da primeira fase. Prova ferrada. Difícil. Desanimadora. Uma pedra no meu caminho que me fez chorar por vários dias, desanimada... mas aí, a boa notícia: eu tinha ido pra segunda fase, na linha (passei com 40 questões).
Novo desafio: a segunda fase seria no domingo antes da apresentação do meu TCC. E duas semanas antes, a conferência municipal de juventude da qual eu era da comissão organizadora, e ainda, um final de semana de encontro sobre Pastoral, que eu havia me comprometido a animar (não podia deixar os amigos na mão).
Foram cerca de dois meses sem comer direito, saindo de casa antes das 8h e chegando depois das 23h (sem intervalo para almoços ou jantar). Eu estudava no ônibus, nos intervalos do estágio, na hora dos lanches, e me revezava entre meu tcc e as questões da OAB.
Em 13 de setembro, o resultado final da OAB: aprovada! A alegria de ler “aprovada” no resultado, de ver o nome na relação final é simplesmente INDESCRITÍVEL. Faz tudo valer a pena e eu faria tudo de novo para ter essa sensação. Era só esperar um pouco para tudo ser real. E o fim da espera chegou
Hoje, o coração vai falar mais alto, com certeza. Todas essas cenas virão à cabeça quando eu jurar defender a liberdade. O frio na barriga é gigante. Ainda tenho medos, inseguranças, dúvidas, e são ainda maiores que os da menina de 16 anos que plantou essa semente; mas minha determinação, fé, esperança e, principalmente, minha paixão, é maior que todos esses obstáculos. Que venham mais desafios. Que venham novos sonhos, porque eu vou realizá-los. Que venham novos obstáculos, porque eu vou superá-los. Que venham novos sorrisos e que estes permaneçam sempre.
E que hoje, prevaleça a menina que leu encantada o discurso de Atticus Finch e que desejou ser a advogada das causas impossíveis só pra mostrar que o impossível é só um pequeno obstáculo dentro da gente mesmo. A única possibilidade que me foi apresentada, desde o inicio, foi o impossível; e eu a quero mais que tudo. Estou acostumada a desafios. Estou acostumada a surpreender. Só não quero que a plantinha em mim morra. E que eu continue com muita coragem para os novos sonhos... sim, eles já estão semeados, agora, é só cultivar.


sábado, 2 de junho de 2012

A MARCHA DAS VADIAS


Minha mãe costuma dizer que “quem tem boca fala o que quer”. De fato, somos livres pra expressar nossas opiniões, certo? Ao menos no mundo ocidental, marcado pela imposta liberdade do liberalismo político e econômico, esse ditado serve como uma luva.
            Nesse contexto, o policial canadense Michael Sanguinetti disse, em uma palestra, que as estudantes de uma universidade canadense deveriam parar de ir à aula com roupas de “vadias”, para acabar de uma vez com casos de estupro no campus.
            A questão gerou polêmica. As estudantes (logicamente) não deixaram barato e criaram o movimento “Slutwalk” (Marcha das Vadias). A ideia está sendo disseminada pelo mundo inteiro e milhares de mulheres (vadias ou não) aderiram ao protesto.
            Mas, o que protestar? A questão primordial não é o direito de se vestir como quer. Uma mulher pode se vestir como quiser para ir ao cinema, ao trabalho, para uma festa. E isso é norteado pelo bom senso.
            Por bom senso ser algo relativo e pessoal, marcado pela influência religiosa, cultural e, principalmente, moral que sofremos, quem somos nós pra julgar o que uma pessoa usa? Isso não significa nada. E como diz outro bom e velho ditado “o uniforme não faz o estudante”.
              Voltando à questão central, o policial canadense perdeu uma grande chance de ficar calado. Ao afirmar essa idiotice ele transformou vítimas em culpadas. A culpa de uma mulher ser estuprada é do homem, o causador da violência. Se o homem se diz racional, como não consegue controlar seus impulsos sexuais diante de uma mulher, e até mesmo diante de meninas (entenda-se CRIANÇAS)?
            Com essa afirmativa estúpida, Michael Sanguinetti disse que as mulheres são culpadas pela irracionalidade dos homens. A eterna culpa de Eva que levou Adão a comer do fruto proibido e assim Deus os expulsou do Paraíso. E isso não é novo. A história está cheia de episódios assim. Diante de uma sociedade marcada pelo patriarcalismo (e consequentemente pelo machismo) é sempre mais cômodo culpar a mulher.
            Essa questão é séria. Temos essa tendência a culpar a vítima e “perdoar” o culpado. É muito mais cômodo proteger homens nesse mundo machista. Existem até mesmo mulheres que concordam com esse policial, que acreditam que se sofressem algum tipo de violência sexual, a culpa seria delas que provocaram com a roupa ou o jeito de andar.
            Nesse caso, freiras e muçulmanas não sofreriam assédios e não seriam estupradas, afinal, elas se vestem “muito bem” e não há nada de sexy em hábitos ou burkas (ao menos pra mim). Mas, ao contrario, elas são tão vítimas de violência sexual quanto as vadias que Michael Sanguinetti falou. O estupro, inclusive, foi usado como arma de guerra contra muçulmanas durante a Guerra de Kosovo, causando a morte física e moral de milhares de mulheres.  E agora, de quem é a culpa?
            Seria cômico se não fosse trágico, mas a culpa é sempre da vítima (isso precisa ser sempre frisado). Uma criança de 5 anos é abusada sexualmente (e não vamos fechar os olhos pra essa realidade) mas o estuprador tem a audácia de dizer que ela o provocou. WHAT????? CUMA?????? Simplesmente não dá pra entender e mesmo que desse não faço questão alguma de compreender. Não faz sentido na minha cabeça de vadia um guardião da moral e dos bons costumes usar da força para conseguir o prazer sexual. Nenhum sentido mesmo.
            Essa é a lógica do sistema opressor, do sistema que mata: mudar o foco da discussão para manter um mundo cada vez mais conveniente ao interesse de poderosos que não respeitam a liberdade e a igualdade humanas. Isso é o mesmo que mudar o foco do problema, que é muito maior. Quanto machismo presente nas palavras do policial, não?
            Por isso mesmo, me coloco ao lado das “vadias” do mundo inteiro. Sou uma vadia que hoje está quase vestida como uma muçulmana, só faltou a burca (é que está muito, muito, muito frio) e estou gritando “Jesus ama as vadias”, tal como as mulheres do “Slutwalk”. Sou uma vadia que não aceita o descaso e desrespeito às mulheres (vadias ou não) em todo o mundo. Sou uma vadia porque sonho viver num mundo em que não haverá mais desigualdade em função do gênero, da etnia ou orientação sexual. Sou uma vadia porque me é insuportável pensar que meninas ainda são vendidas por seus pais para serem prostitutas, sem terem escolha alguma. Sou uma vadia porque é angustiante saber que mulheres muçulmanas são condenadas ao apedrejamento por escolherem outra pessoa para amar. Sou uma vadia porque quero liberdade; não a liberdade do liberalismo, mas a liberdade da poetisa Cecília Meireles, que no fascinante Romanceiro da Inconfidência expressa o sentimento de milhares de oprimidos e oprimidas com os versos “Liberdade - essa palavra,que o sonho humano alimenta:que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda”, quero a liberdade de escolher o caminho que vai alimentar minha alma e quero saber que o ser que tentar usar da força pra impedir minhas escolhas vai ser punido caso haja assim. 
           Por isso afirmo que se ser livre é ser vadia, eu sou vadia. Não gosta da palavra vadia? Ela te ofende? Pois o que me ofende é saber que mulheres são violentadas física, sexual e moralmente todos os dias e não está sendo nada feito para reverter esse quadro. Tá na hora de rever certos valores opressores num mundo em que ocorreu a vitória, ao menos teórica, dos direitos humanos.
            Pois é... minha mãe diz “quem tem boca diz o que quer” e eu respondo “e quem tem ouvidos escuta o que não quer duas vezes”. E os machistas/conservadores/coronéis terão que escutar nossos gritos de vadias livres, que escolheram o caminho da liberdade e da igualdade. ESCUTARAM?????